Ato 1
Frustrada com a vida, resolveu ir `a farmácia. Tinha jurado que não compraria nenhuma roupa então decidiu gastar seus anseios entre os remédios. Como se aquilo fosse curar seu coração.
Parou na seção de tintas de cabelo, pensou como seria mudar a cor e virar outra pessoa. Como o super-homem, talvez outro cabelo a desse outra identidade. Comprou a mais vermelha que tinha na loja. Andando na farmácia, ficou imaginando como seria sua personalidade nova.
A partir de agora frequentaria os lugares que sempre teve medo de entrar, seria uma ativista pela causa das baleias, iria conhecer o mundo inteiro, começando pela Europa do Leste, leria todos os livros que parou da metade, reaprenderia a tocar piano, pintaria as unhas de vermelho, faria uma tatuagem, se declararia ao seu amor secreto.
Abriu um sorriso. Uma chance estava por vir. Diversas chances, um mundo de possibilidade. Ah, como a vida é linda, em um segundo posso estar em Paris rindo de tudo de ruim que passou. Os sorrisos não cessavam mais.
Foi ao caixa, falou um boa tarde ao atendente que nem deu bola pra ela. 12,99 que mudariam sua vida. Passou o cartão uma vez, duas, três. Não é possível. O que está acontecendo?
- Desculpe, madame, seu cartão não foi aprovado.
Ato 2
Olharam-se como se entendessem há séculos, ela já sabia o que ele gostava, como ele era, o que ele esperava. Ele tinha medo dela, medo porque ela o conhecia como ninguém e ele não sabia como.
No meio de um monte de gente, o olhar secreto deles bastava.
Tomaram a decisão. Ele dizia a ela que ela tinha uma forma diferente de se posicionar no mundo, ela ria de tudo aquilo. Achava ele complicado demais.
O peso veio depois do primeiro beijo, dentro daquele carro preto. Não estava previsto ser tão perfeito. Não parecia justo estar feliz daquela forma sem poder.
Ele pensou em desistir, ela riu. Disse que ele não sabia mais como sair. Ele sabia que era verdade.
Entre o vidro embassado e a canção que acidentalmente ficou no repeat, tudo parecia bastar. Bastava a confusão de respirações, de histórias, de anseios.
Logo eles descobriram que não bastava, que teriam que decidir. Mudar ou não de vida?
O problema é que ela tinha uma meta, queria quebrar o coração de alguém. Jurou que faria com o primeiro que aparecesse.
E ele só queria que ninguém mais quebrasse o dele.
Ato 3
Tinham muitos problemas para dormir juntos.
Ela falava dormindo sobre outro homem. Um dia ele acordou bravo no meio da noite e veio tirar satisfação. Ela disse que não era sua culpa, que sequer conhecia o personagem de suas falas. Ele esqueceu por aquela noite.
Pierre era o nome do personagem. Ele começou a se irritar, porque toda noite Pierre aparecia. Pierre era realmente o homem dos sonhos de toda mulher. Toda noite ela falava: Ah, Pierre, flores de novo! Ah, não acredito, vc imaginou o que eu estava pensando. De novo, Pierre?
Ele começou a repetir o que ela ansiava ao Pierre, todos os dias ele repetia os atos do amante imaginário.
O relacionamento dos dois estava as mil maravilhas, nunca foram tão felizes.
Enquanto isso ela resolveu tratar seu problema, já que era o ponto que ela achava que continuava incomodando seu amado. Foi ao médico, ao pai de santo, a curandeira.
Parou de falar dormindo. Se separaram três meses depois.
sexta-feira, 14 de março de 2008
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6 comentários:
Há qualquer coisa de muito errado no amor. Duas almas errantes podem encontrar abrigo nos braços do outro. Mas não estarão apenas a abrir mais um buraco onde, mais cedo do que tarde, acabam por cair? Eu sei, é o típico discurso cínico de um desabrigado da vida que vê um brilho de lâmina em cada beijo, que ouve o som de uma corrente quando corre para o sítio marcado, à hora marcada. E depois, há o espaço do sono e do sonho, do colchão partilhado, dos lençóis transpirados, da união de corpos mesmo quando os espíritos já habitam outros mundos, em traições mais ou menos confessadas. Pode soar meio reducionista mas, para mim, não há nada no amor que o cinema não tenha já fotografado. Ou já todos esquecemos que foi na tela que, na vertigem de uma despedida sem retorno, ouvimos Bogart dizer a Ingrid: "teremos sempre Paris"?
Há algo de muito errado no pós-moderno, que irrita qualquer gente que queira amar. O mundo subverteu a ordem do sentir e do pensar - hoje, há ceticismo demais no amor e ocultismo demais na ciência. Ter alguém virou um jogo, com regras universais. Não há mais espaço, no amor, para o improviso.
Enquanto houver Paris, há hipótese de amor. Imaginar a cidade mais romântica do mundo atingida por um desastre nuclear é cinismo puro. Já o cepticismo não é de agora, se o pós-moderno é agora. É até um conceito bem romântico. Se ele não existisse, não poderia haver o seu contrário: a crença indestrutível no amor. Ou, a haver, não brilharia com tanta força por não existir o sinal oposto como referência. Por falar em brilho, será por acaso que Paris é a cidade das luzes? E até aposto que melhor que a Paris visitada é a Paris imaginada ou fotografada no cinema. Não deve ser fácil encontrar uma Anna Karina nas ruas da cidade. Já revê-la num Godard faz-nos voltar acreditar em quase tudo. Até nessa coisa do amor e do pós-moderno.
Preferiria amar sem precisar assistir cinema europeu...
Não conheço uma única pessoa que prefira ver cinema europeu a amar. Já conheço umas quantas que vêem cinema europeu com muita paixão. Haverá algo de errado nisso? Quanto à necessidade de ver cinema europeu para amar - se é isso que dizes - bom, claro que ela não existe! O meu cinismo não chega a isso, apesar de andar muito perto. E quando falo de cinema europeu, só o faço por me parecer muito diferente da esmagadora maioria dos filmes que os Estados Unidos fabricam todos os anos e que, na maior parte dos casos, insultam a minha inteligência. E acredito que também te sintas insultado a maioria das vezes. Mas, na realidade, poderia falar de algum do bom cinema brasileiro. Por exemplo, Kenoma, de Eliane Caffé, dá uma lição de cinema a muitos dos cineastas que alimentam a porcaria que Hollywood faz, produção após produção. Agora, não podemos subestimar o poder que o cinema tem quando nos conta histórias do mundo e dos homens. Em mais de 100 anos de cinema, filmou-se mais do que cada um de nós conseguirá experimentar nas nossas miseráveis vidas. Por isso, digo que não há nada no amor que o cinema não tenha já fotografado. Não me parece assim tão polémico.
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